A gargalhada de NanNo: uma perspectiva sobre o karma em pessoa
Alerta de spoilers ao longo do texto.
Imagine-se vivendo o Ensino Médio em uma escola conservadora na Tailândia e, por obra do “acaso”, uma garota nova é matriculada, causando o caos e o ápice das emoções mais sombrias que um ser humano pode atingir, tanto nos agentes da educação como em colegas de turma. Essa é a história de NanNo, protagonista do t-drama “Garota de Fora”, original da Netflix.
Como uma voz que sussurra nossos maiores desejos ocultos — que fogem completamente dos Direitos Humanos e levam-nos ao âmago do instinto primitivo, NanNo é uma jovem que pula de escola em escola com o objetivo de desmascarar professores ditadores, alunos violentos, abusos de poder, entre outras situações que beiram ao absurdo. A pergunta principal é: o que é a NanNo? Uma justiceira dos estudantes? Um fantasma do Natal passado? Um ser diabólico que provoca a balbúrdia? Ou o “karma” em matéria? A série não responderá a esse questionamento, mas a teoria principal é de que NanNo é o karma em pessoa.
Ao início de cada episódio, a jovem traz uma reflexão sobre a vida. “Será que somos nós os juízes dessa vida cinzenta? Quem está certo? Quem está errado?” (E6T2) e por aí vai.
A primeira temporada da trama gira em torno do sarcasmo de NanNo, apesar do horror, principalmente no último episódio (E12-13T1), não senti desconforto psicológico. Acredito que o telespectador sinta até prazer em ver as pessoas recebendo exatamente o que elas merecem — e quem não sente, não é? De qualquer forma, gostei da atmosfera que a série cria em torno de um karma racional; planejado. NanNo age de maneira sutil, levando os personagens ao arrependimento extremo, não por terem cometido algum erro, mas, sim, por serem descobertos. Afinal, é difícil assumir uma mancada por conta própria.
Ainda sob uma análise pessoal, interpretei que NanNo sempre dá chances à redenção antes do purgatório começar, os colegas de turma, porém, não levam o karma numa boa, resultando em atitudes criminosas e egoístas. Por aí, a prisão perpétua de cada um começa.
A variedade etária entre os “culpados” é interessante, visto que os episódios, cada um contendo uma história diferente, focam tanto em adultos perversos quanto em adolescentes que têm potencial à perversidade. Pensamos, então, na teoria de Rousseau, de que o homem nasce bom e é corrompido pela sociedade? Só poderíamos julgar caso fôssemos um ser sobrenatural como a NanNo e tivéssemos um raio x das emoções de terceiros.
Por este viés, a primeira temporada conversa com o castigo em vida, trazendo à tona o sentimento de agonia pelo erro cometido. A segunda parte da série, por outro lado, deduzo que o objetivo era levar os personagens à loucura, de maneira mais pragmática — modificando um pouco o padrão das ações pacientes de NanNo.
O episódio que expressa tal cenário sombrio é “Minnie e as quatro almas” (E3T2). Baseado em um caso real, a história foca em Minnie, uma adolescente que dirigia embriagada e bateu acidentalmente em uma van com quatro colegas de turma dentro, todas perderam a vida, com exceção da motorista, Minnie. A jovem, por ter pais influentes e muito dinheiro, nunca se preocupou em arcar com as consequência dos seus erros, mas isso muda quando ela se torna alvo de NanNo.
O enredo segue com Minnie sendo assombrada pelas almas, com pesadelos macabros e cenas de horror. Em uma passagem, NanNo a avisa que “isso tudo pode acabar, é só você assumir o seu erro”. A personagem, todavia, não assume e é coagida por outra assombração a cometer suicídio.
O crime real foi da jovem Orachorn “Praewa” Thephasadin na Ayudhya, que bateu em uma van da Universidade Thammasat (localizada em Bangkok, na Tailândia), causando a morte de nove universitárias. Ela não foi presa, não demonstrou remorso sobre o acontecimento, tampouco teve uma sentença justa. Durante o episódio, no entanto, a ficção extrapola com o psicológico da personagem, denotando um arrependimento obscuro motivado pela culpa.
Atingimos, então, a segunda teoria que surge a partir dos fãs da série: um ser sobrenatural originado a partir do sangue de NanNo que busca semear o sentimento de vingança. A assombração que guiou Minnie ao suicídio se chama Yuri, sua primeira aparição na série foi no primeiro episódio da segunda temporada, mandando bilhetes anônimos para NanNo.
No episódio “Yuri” (E4T2), enxerguei uma linha tênue entre o karma e a vingança pessoal. Levando uma vida pobre, ainda que como estudante de uma escola de classe alta, Yuri faz parte do trio de Nana e Tuptim, que a tratam mais como uma serva do que uma amizade real. Ao longo da história, o telespectador se compadece com a humildade de Yuri, pensando até que NanNo está ao lado dela. Entretanto, é exposto ao final que Yuri era cúmplice de um ritual que as colegas organizavam: atrair meninas frágeis para a casa de Nana e filmarem estas sendo violentadas sexualmente.
O que entendemos nas últimas cenas é que Yuri foi uma das vítimas, senão a primeira, dos planos doentios de Nana e Tuptim, e que estava esperando uma oportunidade de incriminar as colegas. O karma aparece para as três, sendo Yuri uma culpada por se entregar ao sentimento de vingança, deixando tantas outras meninas sofrerem aquela brutalidade em busca somente de retaliação.
Yuri, portanto, morre na mesma banheira em que há o sangue de NanNo e ingere uma pequena quantidade, ressuscitando com dons semelhantes aos da protagonista. Desse modo, ela continua aparecendo nos próximos episódios atrapalhando os planos do karma.
De todo esse contexto que tentei trazer, o fato é que a série não busca uma forma amena de mostrar como as consequências dos nossos atos retornam. Situações que poderiam ter sido resolvidas com decência, acabam sendo prolongadas por puro egoísmo e falta de segurança pessoal. Errar é algo comum entre todos, mas o ser humano tem se tornado cada vez mais incapaz de conviver e aceitar os próprios erros.
Yuri, apesar de ter sofrido uma grande injustiça, preferiu a vingança do que o autocuidado. A série mostra, inclusive, que não presenciamos o karma de quem nos fez mal, esclarecendo que não há alívio real em cultivar sentimentos negativos, muito menos final feliz em conquistar uma vingança perfeita. Em alguns episódios, aliás, NanNo traz referências ao budismo, religião predominante da Tailândia, cuja doutrina é uma das maiores influências na origem do karma.
A vontade de criar uma resenha a partir da série foi a identificação que senti com a mágoa, que, dependendo da direção que escolhemos seguir, pode virar uma bola de neve prejudicial ao emocional. A ponte entre as séries Lúcifer e Garota de Fora é a reflexão de que criamos o nosso próprio inferno pela culpa, apesar da dificuldade em assumir os erros, é a melhor forma de lidar com as emoções que ficam quando tentamos manter uma imagem intocável.
O cenário sinistro e a protagonista tão jovem tiram um pouco do foco reflexivo e trazem a sensação de crônicas de terror tailandesas, mas, prestando atenção nos monólogos de NanNo, sobretudo nas que aparecem ao início de cada episódio, entendemos que sempre foi sobre perdoar ao outro ou a si próprio e seguir em frente, para que o mundo não se torne um looping infinito de vinganças.
Em um último pensamento, após Yuri dar seu sangue para espíritos obcecados em vingança, NanNo expõe: “É um mundo com liberdade absoluta. Onde as pessoas fazem justiça com as próprias mãos. Mas será que… o mundo ainda vai precisar de mim depois disso?” Me levando ao entendimento de que o mundo sempre foi tomado pelo livre arbítrio, mesmo com doutrinas e leis que tentam nos controlar, todavia, sem tais autoridades, faríamos o bem por conta própria?